segunda-feira, novembro 24, 2003

nas paredes sombras desenham almas.
o calor é intenso, o verão sente-se lá fora,
o ar penetra denso pela casa toda.
a mulher descansa o olhar pela janela aberta,
o corpo sentado no sofá vermelho,
as pernas estendidas, as veias azuis pelas pernas brancas,
como rios e poças cheias de sapos.
a casa agora imensa, quartos vazios, cheios de memórias
e de cheiros.
nas parede um ou outro retracto debotado pelo tempo,
nos armários a loiça desenhada, a moldura de madeira com a
fotografia da bisavó morta à muitos anos.
num pequeno pátio interior, ouvem-se pássaros e gatos em luta,
uma malva cobre todo o céu, silenciando o tempo.
a mulher recorda através do cheiro a campo:
o homem que contava histórias de medo ás crianças da cidade,
os caçadores com lebres penduradas no cinto escorrendo sangue pelas calças,
a aldeia que ali se juntava para falar da vida,
para enrolar cigarros com tabaco vendido avulso...
e o chão gasto pelas gentes gastas,
e o tecto de cana a esconder os sardões.
tempos em que a mulher de barriga descaída,
sentada no sofá vermelho,
comia torresmos com a boca toda,
e falava com severidade e sorriso nos lábios,
pois a juventude é cheia de intemperança e de sangue na guelra.
tempos em que ela, a mulher sentada no sofá vermelho,
enchia de beijos o homem caçador de musas,
homem de quatro mulheres.
mulher amante, húmida, mulher que escorre como rio intenso,
mulher púbis, mulher peixe,
mulher sentada no sofá vermelho.
a mulher sorri...o sol ilumina todo o quadro bucólico.
na boca o sabor a canela e arroz doce,
no corpo azul, o calor vermelho que entra pela janela da casa imensa,
na memória, o sangue que se propaga pelo futuro já prometido.
a morte é apenas um repente...algo que pouco se sente.
um sorriso, um calor, um doce, memorias, tanto faz,
a terra acolhe mais tarde o que cedo nos deu,
e a vida é pautada pela continuidade dos nossos,
pois o sangue vive para além do tempo e da memória fugaz dos que ficam.

quinta-feira, novembro 20, 2003

e da cálida voz um grito.
a emoção a circundar em espirais,
e a vida a bater de rompante no som de um violino distante.
no ventre gasto, usado, comido pelos bichos e vermes,
uma criança homem. enrolado. em sangue. em gordura.

foi em tempos…
em que o filho sentia a mãe total.
em que o filho sentia o ar respirado pelas narinas da mãe,
em que o filho sentia o sabor único das entranhas da mãe.

depois o prazer,
pois o filho foi comido pela mãe,
a mãe aglutinada pelo filho.
e o orgasmo partilhado, e os electrões em explosões
de cores internas.
e o filho sorri através dos lábios da mãe,
e a mãe vive pelo corpo do filho,
pois as mães são repartições secundárias da vida dos filhos.
pois as mães são morte anunciada na vida dos filhos.
mãe ovo, mãe planeta total…mãe como constelação,
e o filho como universo, e a vida do filho como cosmos.

o filho do lado de dentro sentindo o lado de fora,
e a mãe de fora sem entender o lado de dentro,
pois o corpo da mulher é um mistério de rosas em flor.

e a mãe velha, de ventre podre,
continua a encerrar o filho homem dentro de si…
a gravidez dura a vida toda da mãe,
e a sua barriga encerra em si segredos muitos de choros e sorrisos
do filho seu.
e o filho existe sempre dentro da mãe,
o nascimento é um acaso virtual que engana os mais incautos.
a mãe vive enrolada na presa que é o filho,
e o filho devora a mãe até ao fim