terça-feira, maio 18, 2004

segunda-feira, novembro 24, 2003

nas paredes sombras desenham almas.
o calor é intenso, o verão sente-se lá fora,
o ar penetra denso pela casa toda.
a mulher descansa o olhar pela janela aberta,
o corpo sentado no sofá vermelho,
as pernas estendidas, as veias azuis pelas pernas brancas,
como rios e poças cheias de sapos.
a casa agora imensa, quartos vazios, cheios de memórias
e de cheiros.
nas parede um ou outro retracto debotado pelo tempo,
nos armários a loiça desenhada, a moldura de madeira com a
fotografia da bisavó morta à muitos anos.
num pequeno pátio interior, ouvem-se pássaros e gatos em luta,
uma malva cobre todo o céu, silenciando o tempo.
a mulher recorda através do cheiro a campo:
o homem que contava histórias de medo ás crianças da cidade,
os caçadores com lebres penduradas no cinto escorrendo sangue pelas calças,
a aldeia que ali se juntava para falar da vida,
para enrolar cigarros com tabaco vendido avulso...
e o chão gasto pelas gentes gastas,
e o tecto de cana a esconder os sardões.
tempos em que a mulher de barriga descaída,
sentada no sofá vermelho,
comia torresmos com a boca toda,
e falava com severidade e sorriso nos lábios,
pois a juventude é cheia de intemperança e de sangue na guelra.
tempos em que ela, a mulher sentada no sofá vermelho,
enchia de beijos o homem caçador de musas,
homem de quatro mulheres.
mulher amante, húmida, mulher que escorre como rio intenso,
mulher púbis, mulher peixe,
mulher sentada no sofá vermelho.
a mulher sorri...o sol ilumina todo o quadro bucólico.
na boca o sabor a canela e arroz doce,
no corpo azul, o calor vermelho que entra pela janela da casa imensa,
na memória, o sangue que se propaga pelo futuro já prometido.
a morte é apenas um repente...algo que pouco se sente.
um sorriso, um calor, um doce, memorias, tanto faz,
a terra acolhe mais tarde o que cedo nos deu,
e a vida é pautada pela continuidade dos nossos,
pois o sangue vive para além do tempo e da memória fugaz dos que ficam.

quinta-feira, novembro 20, 2003

e da cálida voz um grito.
a emoção a circundar em espirais,
e a vida a bater de rompante no som de um violino distante.
no ventre gasto, usado, comido pelos bichos e vermes,
uma criança homem. enrolado. em sangue. em gordura.

foi em tempos…
em que o filho sentia a mãe total.
em que o filho sentia o ar respirado pelas narinas da mãe,
em que o filho sentia o sabor único das entranhas da mãe.

depois o prazer,
pois o filho foi comido pela mãe,
a mãe aglutinada pelo filho.
e o orgasmo partilhado, e os electrões em explosões
de cores internas.
e o filho sorri através dos lábios da mãe,
e a mãe vive pelo corpo do filho,
pois as mães são repartições secundárias da vida dos filhos.
pois as mães são morte anunciada na vida dos filhos.
mãe ovo, mãe planeta total…mãe como constelação,
e o filho como universo, e a vida do filho como cosmos.

o filho do lado de dentro sentindo o lado de fora,
e a mãe de fora sem entender o lado de dentro,
pois o corpo da mulher é um mistério de rosas em flor.

e a mãe velha, de ventre podre,
continua a encerrar o filho homem dentro de si…
a gravidez dura a vida toda da mãe,
e a sua barriga encerra em si segredos muitos de choros e sorrisos
do filho seu.
e o filho existe sempre dentro da mãe,
o nascimento é um acaso virtual que engana os mais incautos.
a mãe vive enrolada na presa que é o filho,
e o filho devora a mãe até ao fim

quarta-feira, outubro 29, 2003

vivo aqui, encurralado no amor que sinto,
encandeado pela luz que emanas,
luz de centelhas quentes, segredos dançarinos em nós.
e o tempo passa sem dor,
como se não passasse,
como se tudo tivesse encoberto de um nevoeiro branco e denso.

segunda-feira, outubro 27, 2003

tu aí..
como estás?
escondido em mim, meu amor

quem és tu?
mais do que eu
pois de mim és, meu amor.

Cresco em ti, e por mim cresces
sou em ti, e por mim és
tão diferente..de nós dois
só tu és, meu amor.

tu que és
razão e emoção em mim
sê quem és, meu amor.

quem és tu
pequeno amor que cresce
sê feliz, meu amor

sexta-feira, outubro 24, 2003

durmo um sono desperto e embriagado,
pois a tua pele desperta desejos em mim contrários
à vontade do corpo, pois o desejo é elemento da alma e não da carne...
deixo-me ir voando pelo sonho, o corpo é leve e o tempo
é abstracto...como o infiníto.
não me canso da viagem pois o alforge está farto de alimento
da deusa, por isso a morte não existe...é inerente e fugaz, como o sonho,
como o desejo que despertas em mim...
sou em ti o que não sei ser em mim,
e por isso é-me mais fácil voar com asas de condor,
pois o passado já não me pesa tanto como noutros tempos...
estou menos inquieto...mas mais sonhador...
é o teu cheiro que me desperta o desejo de viver.
nem deus , nem os homens,
nem as palavras, nem as músicas, nem o encanto.
nem o toque, nem o desejo, nem as contas por pagar,
nem a terra, nem o mar, nem os outros, os muitos outros,
nem os que já não são, nem os sorrisos, nem as lágrimas.

nem os abraços, os apertos, os cheiros, a s magias e rituais,
pois o amor é.

quarta-feira, outubro 15, 2003

os barcos passavam todos os dias da minha infância,
onde os dias cinzentos ditavam brincadeiras de dor...
piões partidos por actos de desumana vontade e
bonecas rasgadas pela casa toda;
peças de ilustração dos nossos dias longos...

e os choros, e as lágrimas contidas...
e as palavras de gume afiado que cortavam a pele
frágil e hiberbe.
a impotência da vontade de criança
o silêncio do olhar triste que ficou...
existem dias de aço na vida.

terça-feira, outubro 14, 2003

beijos de volúpia em segredos escondidos,
como carcaças de naus longínquas, em mar escuro e frio,
onde o silêncio impera onde a paz enfim existe.

línguas, saliva e carne, como permutas de amor,
sempre à noite ou como se noite fosse,
pois na noite vivem todas as loucuras e insanidades,
todos os crimes e pecados...

nos abraços e carícias o desejo e o medo,
a loucura e o terror, pois as bocas de outras bocas são
e os dedos em outras peles vivem, presos, encurralados.

e as palavras que de nada valem tudo,
como pérolas em concha hermética,
foram sangue ardente em ti, como prova de vida nossa.

segunda-feira, outubro 13, 2003

de noite, quando o escuro me invadia alma
e a solidão enchia toda a casa,
o vazio ganhava lugar...

nessas horas, imenças e soturnas,
o meu espírito deambulava como sombras de luz reflectida,
horas e anos e milénios de outro tempo.

por isso nunca me apoquenta a solidão negra,
pois já conheços os seus caminhos imenços...
passo a língua pelo teu corpo de cosmos,
e percorro todas as tuas constelações de mil sois...
oscilo entre sensações de prazer e de medo,
pois anseio perder-me no teu corpo sem mapas,
e ser o teu cheiro o astrolábio dos meus sentidos.

Sabes a frutos todos, pois o teu corpo contem todas as terras,
e sinto em minha língua, pequenas estrelas de anis.
deixa-me tocar com os olhos da memória
o passado que não pude viver,
e cravar-me em picos de rosas, para que a dor da carne asfixie os gritos da alma...
deixa-me entrar em ti e refugiar-me na placenta
onde me crias todos os dias,
viver e dormir num universo de esponja, onde me protejes dos males do mundo...
...deixa-me dormir aí­ onde as águas uterinas me mergulham a alma em éter...adormecendo-me as vontades todas... eu que vivo sem vontades.

deixa-me viver, mas filtrando tu o que me possa ferir os olhos, pois vermelho é o mundo, e quadradas as suas arestas...
no silêncio dos anos esqueci o sentimento,
os dedos esmagaram-se no vácuo das palavras não pensadas...como se a poesia e os sonho não fossem parte de uma mesma coisa..
não sei...ou talvez não queira saber, também não interessa, afinal o silêncio faz parte de mim.
cheira-me a mirra a tua voz...
como de outros tempos me falasses, e o odor das tuas palavras
tocassem nos meus muitos eus ancestrais.
como se os sons que articulas fossem resinas que queimam
em mim, soltando fumos mágicos de êxtase que me ligam
a muitos mais mundos de cristal.

talvez sejam as sí­labas pequenas pedras de fumo não consumado,
talvez seja eu que te queira queimar no fogo do meu desejo,
nos meus olhos limbos negros,
gotas de sangue escarlate deslizam como gotas de orvalho
da carne rasgada, dilacerada pelos cães famintos,
por ogres de papel timbrado.

não que me importe, assim como assim há muitas formas
de se viver a vida...
esta é só uma fase de quarto escuro,
onde contornos suspeitos me comem a alma aos poucos.
talvez sem alma o corpo possa voar mais leve...

porque os tempos são hoje outros,
porque as palavras já não são ervas doces que ardem em carvão aromático,
porque a alma de um ser transforma-nos em muitos seres,
porque lá fora os outros já não nos olham, não nos cheiram, não nos sentem,
poque tudo é morte...
porque tudo é o pouco que nos resta...
porque a vida são muitos dias sem sentido.